ESCRITA AFETIVA

Sobre casas de bonecas

Pense em uma casa de bonecas. Mas não qualquer casa. Imagine que ela possui uma estrutura de tubos de plástico rígido cor-de-rosa, cada um deles com ranhuras pra encaixar as paredes da casa, que são como cartões de papelão grandes e quadrados, estampados nas duas faces, a frente com o exterior da casa e o verso com a mobília e os eletrodomésticos que fazem parte do cômodo em que cada papelão se encaixa.

Essa casa tem cerca de um metro de altura, dois andares e uma escada em espiral toda pomposa na lateral esquerda, rosa choque.

Embaixo, tem três cômodos, banheiro, sala e cozinha, com pisos diferentes desenhados no papelão que encaixa na base, apropriados para cada cômodo. No piso superior, a escada pomposa dá em uma varanda descoberta do tamanho do cômodo que está logo abaixo e conta com mais dois cômodos, quartos.

Finalize a ideia dessa casa com móveis de verdade em miniatura, uma Barbie Rapunzel e um casal Barbie-Ken bronzeados e vestidos com roupa de praia, ambos com mãos e pés meio comidos pelo cachorro, e você vai ter uma boa ideia da casa da Barbie que eu tive na infância, quando minha mãe tinha um emprego que pagava o bastante para e ela pudesse comprar presentes desse tipo pra mim.

Essa casa chamava a atenção de todo mundo que chegava lá em casa, não só pelo tamanho mas pela riqueza de detalhes. Os adultos sempre faziam questão de me lembrar o quanto eu era sortuda por ter ela.

Mas eu tenho uma lembrança interessante dessa casa da Barbie. Eu me lembro que a maioria das minhas brincadeiras nela envolvia, principalmente, organizar e reorganizar os cômodos.

Eu fui uma criança muito racional. Não acreditava em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e quando tive uma amiga imaginária por volta dos 7 anos de idade por sugestão da minha mãe ao reparar como eu era tímida para fazer amizades, eu sabia muito bem que aquilo não era real.

Com essa racionalidade toda, não era muito intuitivo pra mim criar brincadeiras com as Barbies na casa. Eu preferia arrumar o cabelo delas e guardar os sapatinhos em uma caixinha de tamanho apropriado para garantir que eles não iriam se perder do que imaginar o que as Barbies estariam fazendo na casa.

Era uma casa de bonecas muito realista, tinha móveis, eletrodomésticos e uma escada rosa choque bem pomposa. Para algumas crianças, seria uma fonte inesgotável de brincadeiras imaginárias. Para mim, era só um monte de coisas pra limpar, organizar e arrumar de tempos em tempos. O que estava acontecendo era só o que eu conseguia ver mesmo.

Já que cuidar de uma casa de bonecas não é uma tarefa que precisa ser feita com muita frequência, eu ficava dias sem “brincar” com ela e minha mãe, quando me via meio entediada, costumava me lembrar do quanto uma casinha daquela era uma ótima oportunidade para acabar com o meu tédio. 

E lá ia eu, verificar se tinha alguma coisa pra limpar ou arrumar na casa da Barbie.

O tempo passou e a casinha foi ficando esquecida. Se não me falha a memória, eu já estava na sétima série quando minha mãe veio checar se estava tudo bem para mim se ela doasse a casinha para a filha de uma amiga dela.

Eu concordei, claro. Nunca devo ter brincado com a casa como deveria e ela já estava lá parada há muito tempo. Não fazia sentido manter esse brinquedo super legal se havia uma criança interessada nela que talvez fosse fazer melhor proveito dela que eu.

Mas, na primeira vez que eu olhei para o lugar onde casinha deveria estar e ela não estava mais lá, eu senti algo que eu posso descrever como, no mínimo, confuso. Deixar ir, desapegar, me despedir desse objeto que esteve lá comigo desde sempre, em último caso, fazendo parte da decoração da sala de casa, não foi tão fácil como eu pensei que seria.

A casa da Barbie foi embora e eu senti um vazio meio irracional.

Desapegar não é uma tarefa fácil, e essa dificuldade não se dá apenas pelo ato de remover alguma coisa da nossa vida, mas por toda a carga emocional e toda a história que envolve o objeto que está indo embora.

Deixar ir uma coisa que fez parte da nossa vida de alguma forma faz a gente sentir como se estivéssemos permitindo que um pedaço de nós seja esquecido.

Mas isso é só uma sensação. Na verdade, eu não acredito que exista uma forma de apagar boas memórias da nossa cabeça. 

Aliás, é engraçado isso, se a gente pensar bem. O medo de se desfazer de alguma coisa e perder junto a memória que está atrelada a essa coisa, traz consigo a ideia de que nada mais vai acontecer na nossa vida para criar novas memórias que sejam tão preciosas quanto essa antiga.

Fa sentido?

A vida vai acontecendo, novos momentos vão sendo vividos que com certeza se transformarão em lembranças muito apreciadas no futuro e, às vezes, se desfazer de algo é o que precisa acontecer para que a vida se desenrole e a gente crie essas novas memórias.

Logo antes da casa da Barbie ir embora ela não estava mais decorando a sala, mas em uma prateleira grande de ferro no quarto que eu dividia com meus pais. Ela deixou um grande espaço vazio que foi futuramente substituído por um móvel de madeira onde eram guardadas tanto as minhas roupas quanto o meu volumoso material do ensino médio e técnico.

A casinha precisava ir embora para que a vida seguisse seu fluxo. E hoje, o vazio da casa da Barbie foi preenchido com uma boa lembrança que me mostra como eu sempre fui naturalmente conectada com o prazer por organizar as coisas.

Ninguém precisa aprender a ficar feliz quando desapega de algo a que estava muito apegado. Não é sobre parar de sentir. É sobre respeitar o sentimento, guardar uma boa lembrança na memória e fazer o que tem que ser feito para que a vida siga seu fluxo: deixar ir.

Então, e se desapegar não for uma atividade inata, mas sim um hábito que precisa ser praticado consistentemente até que essa ação se torne mais natural?

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